Cafh é um caminho espiritual cuja mística se baseia na ideia da renúncia. Há várias formas de entender a Renúncia.
Ana Cristina Flor¹ amplia o significado da ideia da renúncia, a partir de uma reflexão que pode nos convidar a aprofundar a compreensão sobre este tema. Ana Cristina nos convida a olhar o que denomina os mitos da renúncia².
Neste artigo, identificamos os mitos como os “descaminhos” na prática da renúncia. E vamos, então, falar sobre o descaminho da renúncia, provocado pela idealização de si mesmo, dos demais e do contexto.
A idealização de si mesmo é comum a nós, seres humanos que, muitas vezes tomamos como referência um modelo de perfeição e buscamos enquadrar-nos nesse modelo.
Como somos incompletos, diversos e multifacetados, o uso de modelos de perfeição pode, por um lado, levar-nos a crer que somos incapazes e que jamais poderemos alcançar, por nós mesmos, a expansão de nossa consciência. Essa idealização nos reprime, tolhe nossas possibilidades e gera frustrações pessoais e fragilidades posto que o ser toma como norte um ideal inatingível.
Por outro lado, quando por arrogância idealizamos ou não enxergamos o que somos, confundimos o que imaginamos ser com o que realmente alcançamos com nossa prática. Aprofundamos a nossa incoerência e tendemos a localizar no exterior a origem de nossas dificuldades. Criamos a ilusão de que estamos no caminho para expandir a consciência.
Ambas as posições tendem a levar a uma recusa da realidade, do que somos, do que nos acontece, gerando dor e aprofundamento de conflitos.
Além da idealização de si mesmo, o ser humano tende a idealizar as suas relações com os demais e com o seu contexto, o que o leva a exigir uma harmonia do meio e uma perfeição do comportamento dos demais.
Entretanto, as diferenças e incompletudes são inerentes à condição humana, e, sem renúncia, elas tendem a levar a conflitos e a disputas de poder que, no limite, causam injustiças, desavenças, contendas, guerras.
Buscar ver os demais como são e não como os idealizamos nos previne em relação a expectativas e decepções. E, mais do que isso, nos possibilita ver os conflitos como espaço de trabalho para encontrarmos saídas harmonizadoras. Importante dar-se conta que a harmonia na relação humana não existe naturalmente. Precisa ser edificada desde cada um de nós.
Uma possibilidade seria construir práticas individuais e coletivas cada vez mais adequadas. Cada pessoa poderá aperfeiçoá-las por meio do diálogo e de novas práticas para a aceitação da diversidade e para a promoção do bem comum.
Por exemplo, reconhecer que a prática de prestar atenção às idealizações que fazemos sobre nós mesmos e sobre os demais, a partir de um modelo de perfeição, é uma forma de desfazer um mito ou sair do “descaminho” da renúncia.
É uma forma de pôr os pés na realidade, uma vez que a prática da renúncia pode colaborar para viver relações interpessoais mais harmoniosas. Esse momento mágico de autoconhecimento desfaz a necessidade de adotarmos modelos para aplicar em nossa relação com o outro. Cada um pode ser o que é com as suas próprias limitações e possibilidades.
Prestar atenção às idealizações que fazemos sobre nós mesmos e sobre o outro, tendo como referência modelos de perfeição, é um exercício que requer uma prática de renúncia contínua. E, ao mesmo tempo, sem nos deixar iludir pelos muitos papéis que assumimos na vida, tomar como norte o nosso centro interior simples, que é a nossa individualidade espiritual, ou a nossa singularidade essencial.
É deixar de idealizar o contexto em que se vive para aceitar e aprender com o que nos acontece, sem reprimir ou enquadrar a nós mesmos ou aos demais em modelos de perfeição que não existem. Seria tomar as diferenças e os conflitos como oportunidades de trabalho que nos permitem precisar melhor esse centro interior e identificar nosso papel no contexto em que estamos.
Assim, prevenidos sobre o “descaminho da idealização”, podemos, por meio da prática da renúncia, contribuir para uma maior harmonização em nós mesmos, em nossas relações, nas instituições e no contexto em que vivemos.
O próximo “descaminho da renúncia” fala sobre outro mito que pode impedir novos passos no caminho.
¹ Ana Cristina Flor é a Diretora espiritual de Cafh
² Alocução de Encerramento, Flor, Ana Cristina,2024